No dia 21 de novembro de 2006 morreu Clóvis Camilo Lehrbach, o Camilinho, capa da edição nº 1 do Jornal Boca de Rua. No dia seguinte, por volta das 16h, minutos depois de Clóvis ter sido enterrado sem testemunhas no Campo Santo do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, decidi que estava na hora de registrar a história de Clóvis e do Boca de Rua.
No dia do enterro, busquei com meu carro dois integrantes do jornal: Alexsandro Rocha da Silva, o Bocão, e Alexandre Portuguez, que estavam no Abrigo Marlene. Camilinho havia participado da Turma dos Cachorrinhos assim como Bocão, que o conhecia desde os 9 anos de idade. Clóvis morreu aos 34 anos. O Cemitério da Santa Casa estava ampliando a área das gavetas, em obras, mas mesmo aqueles túmulos de cimento não impressionavam tanto quanto o monte de plaquinhas de números espalhados pelos terrenos dos fundos onde, embaixo de um montinho, recém tinha sido enterrado Camilinho. Ele estava no número 1750. Sob o sol escaldante, eu não sabia o que fazer, nem exatamente por que estava ali. Bocão ensaiou uma Ave Maria e um Pai Nosso duas vezes antes de se decidir pela oração, que Alexandre repetiu baixinho.
No mar de placas indicando o local das covas, a gente não sabia mais onde estavam enterrados André (Alca), nem Luciano (Mercedez), outros membros do Boca que inauguraram no grupo a consciência de que amigo a gente enterra, e não deixa passar como mais uma notícia de “fulano morreu”. Este tipo de notícia chega às ruas e em seguida é esquecido para se poder seguir em frente. Quando chegamos de volta a meu carro, estava acabado. “Mais um dos nossos se foi, mas é a realidade da rua, seguimos em frente”, disse Bocão. Deixei-os no abrigo, fui para casa disposta a começar a escrever. Mas é difícil escrever sobre o Boca. Porque significa reviver emoções, frustrações, expectativas, realidades duras e muito diferentes da minha. Histórias acumuladas ao longo de seis anos de trabalho não saem impunemente para o papel sem uma dose de filtro emocional. Levei 24 horas para tomar coragem.
Por que escolho a morte de Camilinho para começar o que então seria o projeto de um livro? Talvez porque há cerca de uma semana descobri que só conseguiria aplacar minhas noites de insônia e a sensação de prisão que o projeto me deixa colocando no papel e transmitindo a outras pessoas o que aprendi com os Camilos e Bocões com quem convivi e convivo. Ou seria porque há mais ou menos um mês Edgar, então protetor e guardião de Camilinho, me ligou dizendo que achava que seu amigo ia morrer “mesmo” desta vez, porque ele estava com um tumor no cérebro, e pedia que fosse visitá-lo no hospital.
Não fui. Confusa com a doença do meu próprio pai, e cansada de visitar Camilinho, e de encarar a morte dos membros do Boca, apaguei da memória o telefonema. Quando finalmente tomei coragem para ir vê-lo, ligaram dizendo que ele havia fugido de outro hospital. Era o feriado de 15 de novembro. Ele havia dado meu número de telefone como sendo de um parente.
...
Durante o período em que Camilinho foi acompanhado por seu anjo da guarda, que eu só conhecia pelo nome de Edgar, escrevia algumas linhas a cada novo telefonema. Nunca conheci Edgar pessoalmente, só em longas conversas por telefone. Às vezes Edgar telefonava para mim, noutras para Rosina Duarte, também jornalista que trabalhou com Camilinho no Boca de Rua.
Seu Edgar questionava então o que fazer para ajudar Camilinho. Sentia-se culpado por não poder fazer mais, e tentava compensar com presentes como roupas, rádio de pilhas. Já conhecia este sentimento dele. No início do trabalho com os moradores de rua, sempre que um dos integrantes era internado num hospital, eu fazía visitas e levava para eles jornais, papel e caneta (para colocar o que lhes passasse na cabeça e para diminuir a solidão). Muitas vezes eu e Rosina levamos também rádios de pilha, daqueles que se compra em camelôs, já que o hospital é, para mim, sinônimo de silêncio cinza (sobre isto, um dia vou escrever com mais calma).
.....
Em 2 de novembro de 2006, depois de mais um destes telefonemas de seu Edgar, rabisquei num pedaço de papel o seguinte:
“Clóvis, 6º Sul do HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre). Edgar
O que significa isso? É meu telefone que eles dão quando querem contatar um familiar para dizer que estão vivos, pedir visita. Prometo visita, desta vez não vou, mas me alivia saber que Clóvis ainda está vivo. Achei que tinham me ligado para dizer que ele finalmente morreu. Interrompo a leitura das “culpas” do Caçador de Pipas para encarar as minhas próprias. Um feriado, um telefonema de dentro de um presídio, outro de um hospital...”
No dia do enterro, busquei com meu carro dois integrantes do jornal: Alexsandro Rocha da Silva, o Bocão, e Alexandre Portuguez, que estavam no Abrigo Marlene. Camilinho havia participado da Turma dos Cachorrinhos assim como Bocão, que o conhecia desde os 9 anos de idade. Clóvis morreu aos 34 anos. O Cemitério da Santa Casa estava ampliando a área das gavetas, em obras, mas mesmo aqueles túmulos de cimento não impressionavam tanto quanto o monte de plaquinhas de números espalhados pelos terrenos dos fundos onde, embaixo de um montinho, recém tinha sido enterrado Camilinho. Ele estava no número 1750. Sob o sol escaldante, eu não sabia o que fazer, nem exatamente por que estava ali. Bocão ensaiou uma Ave Maria e um Pai Nosso duas vezes antes de se decidir pela oração, que Alexandre repetiu baixinho.
No mar de placas indicando o local das covas, a gente não sabia mais onde estavam enterrados André (Alca), nem Luciano (Mercedez), outros membros do Boca que inauguraram no grupo a consciência de que amigo a gente enterra, e não deixa passar como mais uma notícia de “fulano morreu”. Este tipo de notícia chega às ruas e em seguida é esquecido para se poder seguir em frente. Quando chegamos de volta a meu carro, estava acabado. “Mais um dos nossos se foi, mas é a realidade da rua, seguimos em frente”, disse Bocão. Deixei-os no abrigo, fui para casa disposta a começar a escrever. Mas é difícil escrever sobre o Boca. Porque significa reviver emoções, frustrações, expectativas, realidades duras e muito diferentes da minha. Histórias acumuladas ao longo de seis anos de trabalho não saem impunemente para o papel sem uma dose de filtro emocional. Levei 24 horas para tomar coragem.
Por que escolho a morte de Camilinho para começar o que então seria o projeto de um livro? Talvez porque há cerca de uma semana descobri que só conseguiria aplacar minhas noites de insônia e a sensação de prisão que o projeto me deixa colocando no papel e transmitindo a outras pessoas o que aprendi com os Camilos e Bocões com quem convivi e convivo. Ou seria porque há mais ou menos um mês Edgar, então protetor e guardião de Camilinho, me ligou dizendo que achava que seu amigo ia morrer “mesmo” desta vez, porque ele estava com um tumor no cérebro, e pedia que fosse visitá-lo no hospital.
Não fui. Confusa com a doença do meu próprio pai, e cansada de visitar Camilinho, e de encarar a morte dos membros do Boca, apaguei da memória o telefonema. Quando finalmente tomei coragem para ir vê-lo, ligaram dizendo que ele havia fugido de outro hospital. Era o feriado de 15 de novembro. Ele havia dado meu número de telefone como sendo de um parente.
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Durante o período em que Camilinho foi acompanhado por seu anjo da guarda, que eu só conhecia pelo nome de Edgar, escrevia algumas linhas a cada novo telefonema. Nunca conheci Edgar pessoalmente, só em longas conversas por telefone. Às vezes Edgar telefonava para mim, noutras para Rosina Duarte, também jornalista que trabalhou com Camilinho no Boca de Rua.
Seu Edgar questionava então o que fazer para ajudar Camilinho. Sentia-se culpado por não poder fazer mais, e tentava compensar com presentes como roupas, rádio de pilhas. Já conhecia este sentimento dele. No início do trabalho com os moradores de rua, sempre que um dos integrantes era internado num hospital, eu fazía visitas e levava para eles jornais, papel e caneta (para colocar o que lhes passasse na cabeça e para diminuir a solidão). Muitas vezes eu e Rosina levamos também rádios de pilha, daqueles que se compra em camelôs, já que o hospital é, para mim, sinônimo de silêncio cinza (sobre isto, um dia vou escrever com mais calma).
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Em 2 de novembro de 2006, depois de mais um destes telefonemas de seu Edgar, rabisquei num pedaço de papel o seguinte:
“Clóvis, 6º Sul do HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre). Edgar
O que significa isso? É meu telefone que eles dão quando querem contatar um familiar para dizer que estão vivos, pedir visita. Prometo visita, desta vez não vou, mas me alivia saber que Clóvis ainda está vivo. Achei que tinham me ligado para dizer que ele finalmente morreu. Interrompo a leitura das “culpas” do Caçador de Pipas para encarar as minhas próprias. Um feriado, um telefonema de dentro de um presídio, outro de um hospital...”