quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O dia em que Dayrell subiu na árvore

Em 25 de fevereiro de 1975, o estudante Carlos Alberto Dayrell subiu numa árvore na avenida João Pessoa, em frente à Faculdade de Direito da UFRGS, para evitar que fosse derrubada. Neste vídeo, o ambientalista Augusto Carneiro conta como começou o episódio. O vídeo faz parte de uma série de entrevistas feitas com Carneiro este ano.


quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O ambientalista Augusto Carneiro e suas histórias


A pasta de couro surrada o acompanha há anos, desde que era membro do Partido Comunista (do qual foi expulso depois de denunciar as atrocidades cometidas por Stalin). Nela, Augusto César Cunha Carneiro carrega a vida em papéis: são artigos seus e do amigo José Lutzenberger, companheiro e mestre na luta em defesa do meio ambiente. De vez em quando, leva também um dos livros e várias das fotos de parques, praças e árvores que ajudou a plantar e a implantar e que hoje compõem parte de sua rica biblioteca. Na forma de xerox, suas idéias são espalhadas em panfletos distribuídos em eventos e na Feira Ecológica da Rua José Bonifácio, em Porto Alegre, em uma barraca de livros à venda, aos sábados pela manhã.
Carneiro é um daqueles velhinhos de cabelos brancos e coração a 100 por hora. Tem 84 anos e uma energia invejável. Já foi contador, advogado, funcionário público e naturista. Seu currículo inclui a fundação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e da Pangea Associação Ambientalista. Ele é membro do Conselho da Fundação Gaia, e já atuou no conselho do DMAE.
Tive o privilégio de ouvi-lo contar sua vida e pude registrar suas histórias em DVD. O trabalho, feito por uma cinegrafista amadora como eu, talvez deixe a desejar em técnica, mas é recheado de tanta vida, que a imagem por vezes sem foco perde importância diante do conteúdo. As conversas que tive com Carneiro renderam cinco DVDs que foram doados à Fundação Gaia. Cada pedaço da memória ali registrado ajuda a recompor as aventuras e as lutas dos ambientalistas dos anos 70 para cá. Estão ali as histórias da criação da Agapan, do Parque do Lami, do estudante Dayrell que subiu numa árvore para evitar que fosse derrubada (o vídeo Carneiro e Dayrell, disponível no YouTube, dá uma amostra).
Fiel escudeiro de Lutzenberger, mas nem sempre tão lembrado como ele, Carneiro foi homenageado durante o 2º Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental realizado de 10 a 12 de outubro de 2007 no Salão de Atos da Ufrgs, em Porto Alegre. Recebeu uma placa de reconhecimento dos ecojornalistas na abertura do encontro e o vídeo com um resumo de suas histórias no encerramento.
Mas Carneiro ainda tem muito pela frente, não pode parar. Em sua casa ainda mantém um enorme arquivo sobre meio ambiente, que aos poucos vai repassando para entidades como a Fundação Gaia e o Núcleo Amigos da Terra. São pastas e mais pastas com recortes de jornais antigos, artigos de José Lutzenberger, Henrique Roessler, além de livros que recontam a história de parques, praças e da cidade de Porto Alegre. Material precioso de pesquisa, sua angústia no momento é como organizar e armazenar tudo isso em um só lugar, com o devido respeito, para que a história não se perca.




quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Conversa com Iracilda Toledo, presidente da Associação de Familiares e Vítimas da Chacina de Vigário Geral, Rio de Janeiro

No dia 11 de outubro de 2007, Iracilda Toledo, 50 anos, dois filhos e um neto, vai viajar do Rio de Janeiro a Brasília com 23 mães de vítimas de chacinas, mães de desaparecidos, e de uma nova categoria: dos “arrastados por ônibus”. A viagem tem como destino o Ministério da Justiça. O grupo pretende se reunir com o ministro Tarso Genro para solicitar que sejam formados núcleos de atendimento específico às vítimas de violência em cada Estado, com ouvidoria, policiais e outros profissionais “honestos”.
“Para que mais um grupo, se já existem comissões de direitos humanos na Câmara, no Senado, além da Secretaria Especial de Direitos Humanos, e tantos órgãos que deveriam atuar nesta área?”, perguntei a ela. “Ninguém confia em mais nada”, respondeu.
Conversei com Iracilda numa manhã nublada da Cidade Maravilhosa, quando estive por lá em busca de outra reportagem. Coincidiu que Iracilda estava indiretamente envolvida na história cujos detalhes eu fui checar no Rio de Janeiro. Pedi-lhe que me contasse como se tornou uma ativista das causas sociais. Esta é a sua versão da história que ficou tristemente conhecida como Chacina de Vigário Geral:
Comecei o movimento em 1993 quando perdi meu marido na chacina. Fiz do luto a luta e nunca mais parei. Abandonei casa, filhos, família. Se tivesse parado naquela época, meu arrependimento seria maior. Só vou parar quando o país estiver em paz mesmo, não houver mais crimes, assaltos, e se puder andar tranqüilamente nas ruas. Já abracei outros casos: das mães do Maracanã, da Cinelândia, do Via Show, dos Queimados de Nova Iguaçu. Vai ser difícil eu parar.
A Chacina de Vigário Geral foi uma retaliação que a polícia fez em 29 de agosto de 1993. Um dia antes, quatro policiais haviam sido mortos. Falaram na época que os policiais haviam sido mortos por traficantes da favela, mas tudo ficou no ar.
No dia 29, policiais entraram em Vigário Geral e mataram 21 trabalhadores. Meu marido era chefe da estação da Rede Ferroviária Federal– trabalhava ali fazia 20 anos. Uma das sobreviventes perdeu a família toda: pai, mãe, cinco irmãos, uma cunhada. Só as crianças – cinco – sobreviveram, e ela ficou com todas para criar.
Eu estava em casa. Por incrível que pareça, na hora da chacina havia me dado um sono profundo. Geralmente eu ia atrás do meu marido, mas naquela noite não fui. A chacina começou por volta das 23h30min.
Naquele dia, houve o jogo Brasil X Bolívia, para eliminação da Copa. O Brasil venceu por 6 a 0. Meu marido assistiu ao jogo em casa com dois amigos, porque ali tinha uma tevê grande, a cores. Eu disse que ia à igreja, e ele foi para o bar, com o filho de 12 anos, comprar cigarro. Às 23h10min, chamei meu filho para voltar para casa – tinha que tomar banho e dormir para ir à escola no dia seguinte. Se ele tivesse ficado, teria morrido também...
Acordei à meia-noite, com meu sogro, que é presidente da Associação dos Moradores de Vigário Geral, chamando meu marido porque havia acontecido uma chacina no Bar do Joaci, estavam todos mortos. Foi quando despertei para minha luta por Justiça.
A força veio primeiro de Deus, depois dos filhos. No último dia 29 de agosto, quando fez 14 anos, meu filho disse que queria tanto ver o rosto do pai, que já não lembrava mais dele. Não é justo alguém tirar a vida do outro de maneira nenhuma. Para isso existem leis. Mataram 21 trabalhadores e uma família inteira.
De lá para cá, vi o quanto se precisa lutar para diminuir a violência, a injustiça, tudo, porque hoje não há mais justiça. Há inquéritos parados há nove, 10 anos. Precisa ter alguém para investigar a fundo. Pessoas sérias, porque quem vai denunciar tem medo.
O caso de Vigário Geral foi emblemático: 53 policiais foram denunciados, 33 autuados e responsabilizados no processo. Dez foram absolvidos. Seis morreram antes de irem a julgamento. Sete estão presos.
Mas na maioria das vezes os casos não vão até o fim, porque os familiares desistem, porque são tratados mal, ouvem que o filho era bandido, são ameaçados. Sofri muita represália, e fiquei fora do Rio de Janeiro durante 11 anos
. ”
A história de Iracilda não pára aí. Pergunte a ela detalhes sobre as outras chacinas – ela vai contar como se passaram. Pergunte a ela sobre as indenizações que o Estado começou a pagar durante o governo de Garotinho, ela também sabe. Pergunte a ela quem são os policiais honestos com quem pode contar, ela diz.
No final de nossa conversa, antes de partir, Iracilda e eu comentamos a notícia do jornal O GLOBO de 25 de setembro: Polícia prepara ação para pacificar o Alemão. Na nota de abertura de página, a jornalista Ana Cláudia Costa contava que antes de o Complexo do Alemão ser alvo do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o secretário nacional de Segurança, Antônio Carlos Biscaia, havia determinado que o conjunto de favelas passasse por uma ação “pacificadora para erradicar a força armada”. Mas o que mais nos chamou a atenção na nota foi o parágrafo em que o senador Marcelo Crivella (PRB) dizia que ninguém mais morreria de bala perdida na favela. A solução encontrada: construir casas com material mais resistente, à prova de balas. “Vou ligar para minha amiga que mora lá e dizer que agora, sim, vai estar protegida”, ironizou Iracilda, pouco antes de posar para uma foto na frente da Cinelândia, no Rio de Janeiro, onde acontece a maior parte dos protestos que ela e as outras mães organizam. Em cada um, chegam a reunir mais de 300 mães.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Histórias do Boca de Rua 3 - Arquivos


Este texto foi escrito por mim em março de 2007 e publicado no site Olhares da Cidade (confira pelo link nas sugestões do blog:

"O trabalho com os integrantes do jornal Boca de Rua – pessoas em situação de rua de Porto Alegre – tem me ensinado que, mais do que ser politicamente corretos, temos que ser politicamente e sensivelmente humanos para trabalhar em projetos com esta parcela da população. É um aprendizado doloroso e constante. Doloroso porque não se trata de um trabalho apenas para preencher uma monografia de faculdade, mas de recolher e ajudar a ordenar na forma de notícia (no caso do Boca de Rua) histórias de vidas abandonadas, violentadas, humilhadas pelo desprezo alheio, que ainda preservam em sua essência o desejo do amor, do carinho, da atenção, do respeito – coisas pelas quais todos ansiamos. E constante, porque exige um repensar freqüente de valores.
O que é certo e o que é errado, afinal de contas? Que cidade é esta em que vivemos em que os ditos “cidadãos de bem” se trancafiam em suas casas atrás de grades e fecham o vidro do carro rapidamente diante de pedintes que podem ser assaltantes? Vive-se com medo do outro. Um outro que pode, de fato, matar. Mas tem também um outro que simplesmente vive na praça, não quer saber de violência, a não ser como autodefesa diante da própria fragilidade. Uma pessoa que quer o direito de permanecer e circular pelas ruas, sem ser espancado ou barrado por quem quer que seja.
O Boca de Rua faz isso: traz à tona as histórias, os sentimentos, as demandas destas pessoas. E os transforma, por meio da palavra, em integrantes de um grupo poderoso, capaz de derrubar preconceitos, mitos, medos. Poderia e deveria ser mais – não apenas um canal de comunicação, mas de ocupação de tempo para reduzir o tempo em que ficam expostos às drogas, alternando atividades de cultura e trabalho rentável, para que não tenham de se conformar pedindo dinheiro nas esquinas ou recebendo esmolas sob o olhar acuado de seus benfeitores forçados.
Talvez outras parcerias possam preencher esse vazio que o jornal abre quando escancara as possibilidades de cidadania por meio da elaboração de entrevistas e textos. Parcerias na área de serigrafia, por exemplo, para a produção de camisetas, bonés e bolsas que eles usariam nas vendas – idéia da grife Boca de Rua que surgiu com um ex-integrante, já falecido. Parcerias, talvez, para instrumentalizá-los com uma língua estrangeira, para vender melhor o jornal em eventos, ou para garantir a eles acesso a atividades culturais que lhes desvendem o mundo dos livros, da música além do rap, do teatro consciente.
O jornal Boca de Rua é um projeto em construção. Para seus integrantes, é um passo em direção à reconquista da auto-estima. Ali eles não são números de estatísticas do governo, são simplesmente gente. Para a equipe formada por uma estudante de Jornalismo, um psicólogo e uma jornalista, é a forma encontrada de tentar mudar algo, ainda que minúsculo, na estrutura injusta e desumana da sociedade em que vivemos.
Este trabalho exige diálogo entre os integrantes da equipe para descarregar ansiedades e frustrações, comemorar vitórias e pensar juntos saídas para impasses e problemas que vão desde carregar jornais para distribuição enquanto não se tem uma sede própria, até ajudar o grupo de rua a ir além dos limites impostos pela sociedade e por eles mesmos no crescimento pessoal. Se não há esse diálogo, o projeto se torna um fardo difícil de carregar, e fica mais tentador para os técnicos desistirem ou partirem para outro projeto menos “pesado”. Além disso, em meio a tantas mortes, doenças, tragédias pessoais, é preciso lembrar de comemorar a vida e valorizar as demonstrações que ela dá em pequenos grandes gestos de delicadeza e atenção de cada um dos integrantes do Boca.
A “Metodologia Boca” consiste, por tudo isso, em recuperar histórias, aprender a ouvir o outro, incentivar a escrita, melhorar a articulação do pensamento e diminuir os danos do assistencialismo. Multiplicá-lo depende da capacidade dos “técnicos” de repassar conhecimento para que os integrantes em situação de rua se tornem donos da própria história, participem de outros projetos, reorganizem idéias e, quem sabe, até sua própria vida. Este é um processo longo, que no momento não depende apenas do jornal.
Mesmo depois de seis anos de trabalho, convivendo semanalmente com pessoas que vivem pelas ruas, posso dizer que não conheço essa realidade. Imagino, e chego próximo dela com os relatos destas pessoas, mas isso não é suficiente. A única saída que vislumbro possível, num processo para ajudá-los, é ouvir o que têm a dizer, o que querem, como se sentem.
Quando penso no enorme vão que separa a sociedade em grupos distintos e com direitos desiguais, lembro de uma experiência pela qual passei recentemente. Num curso para ensinar os profissionais da imprensa a prevenir riscos em coberturas jornalísticas, um grupo de jornalistas foi levado para uma “selva” simulada para aprender noções de sobrevivência: como tirar da natureza a comida, a bebida e o abrigo de que precisam. Naquele dia, sem saber que não voltariam ao alojamento, tomaram o café da manhã e saíram com as vestes do corpo e uma mochila (onde deveriam ter apetrechos de sobrevivência). Ao longo do dia, souberam que teriam de aplicar, na prática, as lições do dia e, juntos, coletivamente, pensar na sobrevivência.
Imediatamente começaram os conflitos: parte do grupo se revoltou e não conseguia fazer absolutamente nada, a não ser reclamar e tentar fugir do lugar. Outros se uniram para fazer uma fogueira (a noite estava muito fria) e assar uma galinha, na expectativa de, no dia seguinte, voltar ao alojamento.
Recordo dos comentários das pessoas no entorno da fogueira: reclamações de frio, fome, sono, sensação de abandono. Um deles, num determinado momento, sem conseguir dormir, chegou a comentar: “Agora entendo como devem se sentir os moradores de rua”.
Tentar colocar-se no lugar do outro talvez seja o início de um caminho, certamente não é o único e nem o melhor. É muito fácil desprezar e pisar quem não tem nada, nem auto-estima, nem bens materiais. Tudo na rua parece descartável, inclusive alguns sentimentos, que é para não doer tanto. Nos abrigos, eles são números. Nas manchetes dos jornais, são bandidos e mendigos. Na vida real, podem ser qualquer pessoa que tenha perdido a casa, a família, a confiança nos governantes, a privacidade, a aparência de ser igual aos outros."
Obs: a foto mostra uma das reuniões da equipe do Boca de Rua que coordenei. Na época, nos reuníamos numa praça em frente ao antigo Bandejão Popular, na avenida Erico Verissimo, próximo à Rótula do Papa. A idéia de fazer uma reunião na rua mesmo, sobre a grama, além de tirar o caráter de institucionalização, me dava uma sensação de liberdade difícil de descrever.

Histórias do Boca de Rua 2 - Camilinho


No dia 21 de novembro de 2006 morreu Clóvis Camilo Lehrbach, o Camilinho, capa da edição nº 1 do Jornal Boca de Rua. No dia seguinte, por volta das 16h, minutos depois de Clóvis ter sido enterrado sem testemunhas no Campo Santo do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, decidi que estava na hora de registrar a história de Clóvis e do Boca de Rua.
No dia do enterro, busquei com meu carro dois integrantes do jornal: Alexsandro Rocha da Silva, o Bocão, e Alexandre Portuguez, que estavam no Abrigo Marlene. Camilinho havia participado da Turma dos Cachorrinhos assim como Bocão, que o conhecia desde os 9 anos de idade. Clóvis morreu aos 34 anos. O Cemitério da Santa Casa estava ampliando a área das gavetas, em obras, mas mesmo aqueles túmulos de cimento não impressionavam tanto quanto o monte de plaquinhas de números espalhados pelos terrenos dos fundos onde, embaixo de um montinho, recém tinha sido enterrado Camilinho. Ele estava no número 1750. Sob o sol escaldante, eu não sabia o que fazer, nem exatamente por que estava ali. Bocão ensaiou uma Ave Maria e um Pai Nosso duas vezes antes de se decidir pela oração, que Alexandre repetiu baixinho.
No mar de placas indicando o local das covas, a gente não sabia mais onde estavam enterrados André (Alca), nem Luciano (Mercedez), outros membros do Boca que inauguraram no grupo a consciência de que amigo a gente enterra, e não deixa passar como mais uma notícia de “fulano morreu”. Este tipo de notícia chega às ruas e em seguida é esquecido para se poder seguir em frente. Quando chegamos de volta a meu carro, estava acabado. “Mais um dos nossos se foi, mas é a realidade da rua, seguimos em frente”, disse Bocão. Deixei-os no abrigo, fui para casa disposta a começar a escrever. Mas é difícil escrever sobre o Boca. Porque significa reviver emoções, frustrações, expectativas, realidades duras e muito diferentes da minha. Histórias acumuladas ao longo de seis anos de trabalho não saem impunemente para o papel sem uma dose de filtro emocional. Levei 24 horas para tomar coragem.
Por que escolho a morte de Camilinho para começar o que então seria o projeto de um livro? Talvez porque há cerca de uma semana descobri que só conseguiria aplacar minhas noites de insônia e a sensação de prisão que o projeto me deixa colocando no papel e transmitindo a outras pessoas o que aprendi com os Camilos e Bocões com quem convivi e convivo. Ou seria porque há mais ou menos um mês Edgar, então protetor e guardião de Camilinho, me ligou dizendo que achava que seu amigo ia morrer “mesmo” desta vez, porque ele estava com um tumor no cérebro, e pedia que fosse visitá-lo no hospital.
Não fui. Confusa com a doença do meu próprio pai, e cansada de visitar Camilinho, e de encarar a morte dos membros do Boca, apaguei da memória o telefonema. Quando finalmente tomei coragem para ir vê-lo, ligaram dizendo que ele havia fugido de outro hospital. Era o feriado de 15 de novembro. Ele havia dado meu número de telefone como sendo de um parente.
...
Durante o período em que Camilinho foi acompanhado por seu anjo da guarda, que eu só conhecia pelo nome de Edgar, escrevia algumas linhas a cada novo telefonema. Nunca conheci Edgar pessoalmente, só em longas conversas por telefone. Às vezes Edgar telefonava para mim, noutras para Rosina Duarte, também jornalista que trabalhou com Camilinho no Boca de Rua.
Seu Edgar questionava então o que fazer para ajudar Camilinho. Sentia-se culpado por não poder fazer mais, e tentava compensar com presentes como roupas, rádio de pilhas. Já conhecia este sentimento dele. No início do trabalho com os moradores de rua, sempre que um dos integrantes era internado num hospital, eu fazía visitas e levava para eles jornais, papel e caneta (para colocar o que lhes passasse na cabeça e para diminuir a solidão). Muitas vezes eu e Rosina levamos também rádios de pilha, daqueles que se compra em camelôs, já que o hospital é, para mim, sinônimo de silêncio cinza (sobre isto, um dia vou escrever com mais calma).
.....

Em 2 de novembro de 2006, depois de mais um destes telefonemas de seu Edgar, rabisquei num pedaço de papel o seguinte:

“Clóvis, 6º Sul do HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre). Edgar
O que significa isso? É meu telefone que eles dão quando querem contatar um familiar para dizer que estão vivos, pedir visita. Prometo visita, desta vez não vou, mas me alivia saber que Clóvis ainda está vivo. Achei que tinham me ligado para dizer que ele finalmente morreu. Interrompo a leitura das “culpas” do Caçador de Pipas para encarar as minhas próprias. Um feriado, um telefonema de dentro de um presídio, outro de um hospital...”