sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Histórias do Boca de Rua 3 - Arquivos


Este texto foi escrito por mim em março de 2007 e publicado no site Olhares da Cidade (confira pelo link nas sugestões do blog:

"O trabalho com os integrantes do jornal Boca de Rua – pessoas em situação de rua de Porto Alegre – tem me ensinado que, mais do que ser politicamente corretos, temos que ser politicamente e sensivelmente humanos para trabalhar em projetos com esta parcela da população. É um aprendizado doloroso e constante. Doloroso porque não se trata de um trabalho apenas para preencher uma monografia de faculdade, mas de recolher e ajudar a ordenar na forma de notícia (no caso do Boca de Rua) histórias de vidas abandonadas, violentadas, humilhadas pelo desprezo alheio, que ainda preservam em sua essência o desejo do amor, do carinho, da atenção, do respeito – coisas pelas quais todos ansiamos. E constante, porque exige um repensar freqüente de valores.
O que é certo e o que é errado, afinal de contas? Que cidade é esta em que vivemos em que os ditos “cidadãos de bem” se trancafiam em suas casas atrás de grades e fecham o vidro do carro rapidamente diante de pedintes que podem ser assaltantes? Vive-se com medo do outro. Um outro que pode, de fato, matar. Mas tem também um outro que simplesmente vive na praça, não quer saber de violência, a não ser como autodefesa diante da própria fragilidade. Uma pessoa que quer o direito de permanecer e circular pelas ruas, sem ser espancado ou barrado por quem quer que seja.
O Boca de Rua faz isso: traz à tona as histórias, os sentimentos, as demandas destas pessoas. E os transforma, por meio da palavra, em integrantes de um grupo poderoso, capaz de derrubar preconceitos, mitos, medos. Poderia e deveria ser mais – não apenas um canal de comunicação, mas de ocupação de tempo para reduzir o tempo em que ficam expostos às drogas, alternando atividades de cultura e trabalho rentável, para que não tenham de se conformar pedindo dinheiro nas esquinas ou recebendo esmolas sob o olhar acuado de seus benfeitores forçados.
Talvez outras parcerias possam preencher esse vazio que o jornal abre quando escancara as possibilidades de cidadania por meio da elaboração de entrevistas e textos. Parcerias na área de serigrafia, por exemplo, para a produção de camisetas, bonés e bolsas que eles usariam nas vendas – idéia da grife Boca de Rua que surgiu com um ex-integrante, já falecido. Parcerias, talvez, para instrumentalizá-los com uma língua estrangeira, para vender melhor o jornal em eventos, ou para garantir a eles acesso a atividades culturais que lhes desvendem o mundo dos livros, da música além do rap, do teatro consciente.
O jornal Boca de Rua é um projeto em construção. Para seus integrantes, é um passo em direção à reconquista da auto-estima. Ali eles não são números de estatísticas do governo, são simplesmente gente. Para a equipe formada por uma estudante de Jornalismo, um psicólogo e uma jornalista, é a forma encontrada de tentar mudar algo, ainda que minúsculo, na estrutura injusta e desumana da sociedade em que vivemos.
Este trabalho exige diálogo entre os integrantes da equipe para descarregar ansiedades e frustrações, comemorar vitórias e pensar juntos saídas para impasses e problemas que vão desde carregar jornais para distribuição enquanto não se tem uma sede própria, até ajudar o grupo de rua a ir além dos limites impostos pela sociedade e por eles mesmos no crescimento pessoal. Se não há esse diálogo, o projeto se torna um fardo difícil de carregar, e fica mais tentador para os técnicos desistirem ou partirem para outro projeto menos “pesado”. Além disso, em meio a tantas mortes, doenças, tragédias pessoais, é preciso lembrar de comemorar a vida e valorizar as demonstrações que ela dá em pequenos grandes gestos de delicadeza e atenção de cada um dos integrantes do Boca.
A “Metodologia Boca” consiste, por tudo isso, em recuperar histórias, aprender a ouvir o outro, incentivar a escrita, melhorar a articulação do pensamento e diminuir os danos do assistencialismo. Multiplicá-lo depende da capacidade dos “técnicos” de repassar conhecimento para que os integrantes em situação de rua se tornem donos da própria história, participem de outros projetos, reorganizem idéias e, quem sabe, até sua própria vida. Este é um processo longo, que no momento não depende apenas do jornal.
Mesmo depois de seis anos de trabalho, convivendo semanalmente com pessoas que vivem pelas ruas, posso dizer que não conheço essa realidade. Imagino, e chego próximo dela com os relatos destas pessoas, mas isso não é suficiente. A única saída que vislumbro possível, num processo para ajudá-los, é ouvir o que têm a dizer, o que querem, como se sentem.
Quando penso no enorme vão que separa a sociedade em grupos distintos e com direitos desiguais, lembro de uma experiência pela qual passei recentemente. Num curso para ensinar os profissionais da imprensa a prevenir riscos em coberturas jornalísticas, um grupo de jornalistas foi levado para uma “selva” simulada para aprender noções de sobrevivência: como tirar da natureza a comida, a bebida e o abrigo de que precisam. Naquele dia, sem saber que não voltariam ao alojamento, tomaram o café da manhã e saíram com as vestes do corpo e uma mochila (onde deveriam ter apetrechos de sobrevivência). Ao longo do dia, souberam que teriam de aplicar, na prática, as lições do dia e, juntos, coletivamente, pensar na sobrevivência.
Imediatamente começaram os conflitos: parte do grupo se revoltou e não conseguia fazer absolutamente nada, a não ser reclamar e tentar fugir do lugar. Outros se uniram para fazer uma fogueira (a noite estava muito fria) e assar uma galinha, na expectativa de, no dia seguinte, voltar ao alojamento.
Recordo dos comentários das pessoas no entorno da fogueira: reclamações de frio, fome, sono, sensação de abandono. Um deles, num determinado momento, sem conseguir dormir, chegou a comentar: “Agora entendo como devem se sentir os moradores de rua”.
Tentar colocar-se no lugar do outro talvez seja o início de um caminho, certamente não é o único e nem o melhor. É muito fácil desprezar e pisar quem não tem nada, nem auto-estima, nem bens materiais. Tudo na rua parece descartável, inclusive alguns sentimentos, que é para não doer tanto. Nos abrigos, eles são números. Nas manchetes dos jornais, são bandidos e mendigos. Na vida real, podem ser qualquer pessoa que tenha perdido a casa, a família, a confiança nos governantes, a privacidade, a aparência de ser igual aos outros."
Obs: a foto mostra uma das reuniões da equipe do Boca de Rua que coordenei. Na época, nos reuníamos numa praça em frente ao antigo Bandejão Popular, na avenida Erico Verissimo, próximo à Rótula do Papa. A idéia de fazer uma reunião na rua mesmo, sobre a grama, além de tirar o caráter de institucionalização, me dava uma sensação de liberdade difícil de descrever.