sábado, 9 de fevereiro de 2008

Histórias do Boca de Rua - oficina de Serigrafia





Em 2003, foi realizada uma experiência de oficina de serigrafia com alguns integrantes do jornal Boca de Rua. As camisetas com o logotipo do jornal foram vendidas durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.

Histórias do Boca de Rua 6 - Neri



Neri, da percussão à serigrafia

Neri Martins Carvalho poderia ter sido músico, talvez. Tirava sons incríveis da boca imitando instrumentos de percussão e tinha prazer em cantar – de certa forma, foi ele quem primeiro incorporou o Rap do Mercedez à lista das músicas cantadas pelo grupo de hip hop formado por integrantes do jornal Boca de Rua. Estava no primeiro grupo de rap formado pelo Boca e se apresentou mais de uma vez representando a turma (no vídeo do You Tube ele aparece com os amigos do Boca de Rua: Alex, Gilmar e Alexandre).
Tinha tino para negócios. Era um dos melhores vendedores do jornal, porque possuía uma lábia para convencer seus leitores a comprarem seus exemplares como ninguém. Foi ele quem sugeriu que as camisetas e outros objetos com o símbolo do Boca de Rua virassem uma grife. A idéia não foi levada adiante, mas o interesse pela marca era evidente.
O símbolo do Boca – uma bocarra vermelha escancarada e o nome do jornal entre dois símbolos de igualdade – havia sido criado por Riquinho, um ex-integrante do jornal. Foi estampado em camisetas mais de uma vez. Na primeira delas, em camisetas brancas doadas para a ONG Alice para fazer os uniformes do grupo usados nas palestras, conferências e em outros encontros em que integrantes do Boca estavam presentes vendendo o jornal ou falando sobre o trabalho.
As primeiras camisetas foram entregues para os integrantes do Boca de Rua com o compromisso de que eles mesmos as guardassem. Mas na rua, ou parando em casas de passagem, camisetas se perdem, são trocadas por outros artigos de necessidade mais imediata, ou são roubadas.
No 1º Fórum Social Mundial de que participaram, em 2001, eu levava estas camisetas para casa, lavava (o grupo era pequeno, eram umas quatro pessoas, no máximo) e trazia no dia seguinte, limpas e passadas, para que as colocassem de novo. Era o uniforme deles – tinham de estar apresentáveis, eu pensava. E na rua não tinham jeito de fazer isso de um dia para o outro.
A grife quase vingou. Um instrutor de serigrafia que dava aulas para um grupo de garotos da Febem, Edinilson, topou fazer uma experiência com o Boca de Rua. A idéia era usar a serigrafia, que também utiliza elementos da comunicação, como outra possibilidade de geração de renda. Se os integrantes do Boca de Rua fizessem as próprias camisetas do uniforme e outras roupas e cartazes que eventualmente poderiam vender, estariam não só ocupando o tempo ocioso, como se especializando num outro trabalho, além do jornal, que lhes afastaria mais tempo de drogas e da violência das ruas. Esta era a proposta.
O instrutor de serigrafia topou o desafio. Era preciso levar a turma de interessados com pulso firme – eles iriam lidar com tinta, solvente, precisavam ter disciplina, freqüência. E estariam aprendendo algo novo.
As imagens do vídeo registrando esta experiência são emocionantes (uma delas está no You Tube - Neri aparece no final, carregando camisetas). Eles trabalharam em serigrafia, produziram suas próprias camisetas e as venderam durante o Fórum Social Mundial.
Vencida esta etapa, a seguinte era levar adiante a combinação do que fazer com o dinheiro da venda. Haviam combinado que os primeiros trocos seriam reinvestidos no projeto de serigrafia, para comprar mais tinta e dar continuidade ao trabalho.
No final do evento, praticamente todas as camisetas haviam sido vendidas. Foi um sucesso. Mas apenas dois deles retornaram com uma parte do dinheiro combinado para reinvestir no projeto. O grupo ainda não havia amadurecido para ir adiante nesta etapa. Precisavam de mais tempo.
O projeto da serigrafia não continuou. Um dos motivos, na época, foi porque o instrutor ficou desempregado e teve de buscar outras atividades. Trabalho voluntário seria pedir-lhe demais quando ele estava preocupado com a própria sobrevivência.
As telas com o desenho do logotipo do Boca de Rua estão guardadas na sede da Alice. Quem sabe um dia o sonho da grife proposto por Neri ainda vire realidade.

CENA 1

Neri e L., sua namorada, estavam no meu carro. Íamos para o Hospital Presidente Vargas ver o bebê do casal, que havia nascido com problemas. Como a mãe usava drogas e vivia na rua, havia ainda o risco de o casal perder a guarda da criança.
Só notei que uma viatura da polícia estava me dando sinal para parar quando ela chegou mais próximo do meu carro. Os policiais haviam visto Neri e L. maltrapilhos dentro do carro, e acharam que eu estava a perigo, sendo ameaçada por marginais. Parei o carro, mostrei a pilha de jornais que sempre carregava no porta-malas, expliquei o projeto, e disse que estava tudo bem, Neri e L. faziam parte da equipe. Ele riu muito do episódio. Estava acostumado com a discriminação. Eu não.


CENA 2

Neri fez parte das primeiras turmas do Boca de Rua que participaram do Fórum Social Mundial em Porto Alegre.
No 1º Fórum Social Mundial, os vendedores do Boca de Rua venderam a primeiríssima edição do jornal. O interesse do público era enorme, os elogios constantes aos textos que eles podiam afirmar com segurança que eram feitos por eles mesmos. Estavam todos satisfeitos, orgulhosos, felizes por terem ganhado uma boa quantia em dinheiro e terem sido valorizados e recebidos carinhosamente dentro do espaço de uma universidade (PUCRS) à qual eles nunca tinham tido acesso daquela forma. Não haviam esmolado. Tinham trabalhado, e muito.
No final do dia, eles mal se continham de alegria. Tinham vivido sob uma nova identidade de grupo, vestidos com a camiseta do Boca de Rua.
Eu os havia trazido de carro. No porta-malas, no estacionamento da PUCRS, haviam ficado os pertences que sempre carregam pela rua: camisetas que vestiam antes de pôr o uniforme, restos de comida, e a garrafinha com o loló, companheiro do dia-a-dia.
Terminado o trabalho do dia, recolhemos a banca improvisada em frente ao prédio 41 da PUCRS, e seguimos em direção ao estacionamento. Eles estavam distraídos, comemorando as vendas e discutindo o que iriam fazer com o dinheiro. Em determinado momento, olhei pra trás, e vi um bando de policiais da Brigada Militar nos seguindo.
Ninguém do Boca de Rua usava crachá de participante do Fórum, e nem nós havíamos pedido autorização para montar nossa banquinha para vender o jornal ali.
Os policiais talvez não compreendessem a importância do momento para o grupo. Os vendedores do Boca de Rua seriam humilhados se os guardas os parassem para pedir identidade e esclarecimento sobre quem eram, o que estavam fazendo ali e por que –aliás, como era de praxe quando estavam na rua. Seriam revistados porque eram um grupo “diferente” dos estudantes e estrangeiros que circulavam pelo local.
“Esqueci de uma coisa, vamos ter de voltar”, eu disse, com medo de que, se nos afastássemos muito do local onde estava o público do Fórum Social Mundial, e se os guardas fossem conosco até o estacionamento, ficaríamos longe das pessoas que poderiam nos dar apoio por estar ali. Pior: o dia dos felizes integrantes do Boca de Rua teria sido destruído pelo preconceito e pela humilhação de serem discriminados e vasculhados como suspeitos.
Deixei o grupo na frente do prédio 41, sem que eles tivessem notado o que estava acontecendo. E fui direto à sala de imprensa onde estava o fotógrafo Luiz Abreu, chefe da fotografia, e marido de Rosina Duarte, também jornalista do grupo. Abreu não titubeou quando soube do ocorrido. Dependurou a máquina fotográfica no pescoço e nos acompanhou até o estacionamento.
Nesse ínterim, Rosina se uniu a nós na comitiva. Com aquela super câmera de Abreu nos abrindo caminho, chegamos ao estacionamento, sãos e salvos. Conseguimos sobreviver a esta situação e chegamos a acreditar que um outro mundo realmente era possível, pelo menos enquanto a polícia não alcançasse os vendedores do Boca novamente.

CENA 3

Neri foi morrendo aos poucos. Foi definhando e deixando o sorriso maroto e bonito ficar banguela, resultado das brigas na rua. Passou um tempo sem vir às reuniões do Boca. Fugiu do hospital e morreu em 9 de junho de 2005, aos 23 anos de idade, exatamente uma semana depois de Alca. Descobrimos depois de sua morte que ele tinha família em Caxias do Sul e foi lá que o enterraram. Junho de 2005 foi o mês mais triste da história do Boca de Rua. Neri e Alca não estavam mais conosco.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Histórias do Boca de Rua - Alca e suas histórias



André tinha o dom da palavra. E deixou ela registrada em vídeos, no jornal Boca de Rua e em seus cadernos de anotações.

Histórias do Boca de Rua 5 - Alca


André Luis Cardoso de Araújo, o Alca
(1974-2005)

O apelido surgiu muito antes da sigla do livre comércio. Conheci André Luis Cardoso de Araújo, o Alca, por uma reportagem do jornal Zero Hora sobre a Turma dos Cachorrinhos – grupo que havia sido alfabetizado na Praça do Rosário pela professora Deirdre Bicca. Na reportagem feita pela jornalista Eliane Brum, Alca dizia que o sonho dele era ter uma casa, e não morreria antes disso.
Quando eu e Rosina Duarte começamos a trabalhar com as pessoas da Praça do Rosário a idéia de fazer um jornal que fosse a voz deles, Alca sempre era citado. Parecia uma figura mítica, fazia parte das histórias dos moradores de rua. Era amigo do Mercedez, do Bocão, do Clóvis. Quem não o conhecia pessoalmente, pelo menos tinha ouvido falar dele.

Ele se integrou à equipe do Boca de Rua quando já estávamos trabalhando no Parque Redenção, ao lado do Auditório Araújo Vianna. Os encontros aconteciam aos sábados, a partir das 15h. Com aquele vozeirão e um sorriso largo, Alca impunha respeito e simpatia. Mais do que isso, conseguia expressar com emoção e objetividade, em frases poéticas até, o que os outros sentiam e tentavam organizar em palavras.

Alca tinha uma madrinha – sua protetora e incentivadora, Mariléia -, que fomos conhecendo aos poucos, pelas histórias que ele contava, assim como Tonica, mãe de Aninha, de quem ele sempre falava com carinho. Delas, soubemos depois, ele tinha recebido ajuda e incentivos para estudar e se formar em cursos como o de cabelereiro. Tive o privilégio de ser convidada pra esta formatura e ainda guardo as fotos que fiz dele, sorridente, feliz, na festa realizada depois numa pizzaria. Era formado também nos cursos de padeiro e confeiteiro - fez mais de uma vez o bolo da festa de fim de ano do Boca de Rua. Lembro do bolo de frutas, delicioso.

Como havia prometido na reportagem da Zero Hora, Alca havia realmente conseguido conquistar sua casa, que ficava na avenida Bento Gonçalves. Era, portanto, um dos poucos do grupo que tinha um endereço fixo de moradia própria, e participava com assiduidade e interesse de grupos como Gapa, Nuances, além de conferências e seminários sobre os direitos dos moradores de rua, das crianças e adolescentes em situação de risco, sobre HIV/Aids.

Foi criado junto com outras crianças órfãs. Havia sido abandonado pelo pai, e era muito agradecido pela instituição que o acolheu. Andava sempre cercado de crianças. Ele dizia que queria fazer algo por elas. Também por isso acabou se tornando uma espécie de monitor do Boquinha (suplemento infanto-juvenil do Boca de Rua).

Alca tinha fome de aprender. Era meio cabeça-dura, teimoso, aparentemente agressivo, mas ouvia e absorvia avidamente tudo o que se falasse para ele.

E que dom ele tinha! Quem ouvia seus discursos, nas oficinas e conferências, ficava encantado. O domínio sobre as palavras, seja contando a história de sua vida, ou colocando-se como porta-voz das histórias dos outros, aparecia também na escrita. Podia não ter um português corretíssimo, mas entre as “heranças” que Alca deixou ficaram textos, crônicas e poemas registrados à mão em páginas e cadernos inteiros. É praticamente um livro de memórias pronto, esperando editor para ser publicado.


HIV positivo, era o exemplo de como era possível conviver bem com a doença, tomando os remédios e fazendo exames periódicos.

Por isso, quando o marido de Mariléia, sua madrinha, me ligou no dia 2 de junho de 2005 para avisar que Alca havia morrido, a primeira sensação foi de incredulidade.

“O Alca? Não pode! Ele tomava remédios, tinha casa, tinha sonhos... (pergunte a um morador de rua se ele tem sonhos – a maioria não consegue descrever nenhum), era membro ativo do Gapa... ele, não!”

Era o último que poderíamos imaginar perder assim... a descrição, feita mais tarde pelos próprios amigos, de como ele morreu, nos faz crer que poderia ter sido uma overdose, ou uma reação agravada pelo uso de antibióticos fortes para curar uma pneumonia (uma doença oportunista da Aids). Nunca tivemos certeza, e isso não era importante no momento, embora sua morte tenha suscitado reuniões depois, com o grupo, para discutir estes temas.

Pouco tempo antes, havia corrido um boato entre nós de que outro integrante, Neri Martins Carvalho, estava muito doente. Ele não aparecia mais nas reuniões e, quando um participante do Boca trouxe a notícia de que Neri tinha morrido, começamos uma busca pelos hospitais e por familiares para confirmar a informação. Passou uma ou duas semanas e Neri reapareceu. Magro, abatido, mas vivo.

Por isso, quando tomei coragem e liguei finalmente para Rosina para avisá-la da morte de Alca, lembro de ter dito:

- Tenho uma notícia ruim para te dar.
- O Neri morreu? – perguntou Rosina.
- Não, foi Alca.

No enterro de Alca, estavam lá os amigos conquistados nas várias fases da vida.

Alca, André ou Andréia, como era seu nome de guerra, deixou saudades, muitas saudades.

Gosto de pensar nele como uma energia ambulante, contagiante, de força, de luta e de perseverança pela vida. Como um pássaro livre, que sobrevoa nossas cabeças com suas asas poderosas, indo longe pra buscar outros mundos onde agitar suas idéias.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Histórias do Boca de Rua 4 - Mercedez



Esse tal de Mercedez

Sempre que lembro de Luciano Felipe da Luz, o Mercedez que trabalhou no jornal Boca de Rua, a cena que me vem à cabeça é eu, ele e a jornalista Rosina Duarte no meu carro, cantando juntos a música "Aquarela" de Toquinho, e depois entrando rindo e abraçados no Hospital Psiquiátrico São Pedro. "Onde fica a Unidade de Desintoxicação de dependentes químicos?", perguntamos ao guarda que, sem entender o que duas branquelas de nariz longo e afilado e um negro reluzente e feliz faziam por ali, nos olhou meio constrangido.

Fugíamos do estereótipo dos pacientes do São Pedro. Mercedez estava com um macacão jeans claro, bem arrumado, cabelo e barba feitos, bem diferente do homem atirado no chão que havíamos conhecido... há quanto tempo? Talvez nem seis meses.

A aproximação dele conosco havia sido gradual. Ele ficava estirado junto a uma das paredes do Colégio Rosário, em Porto Alegre, na esquina próxima ao viaduto. Completamente "chapado" - geralmente de loló -, sujo e mal cheiroso. Naquela época, nos reuníamos com os integrantes do jornal Boca de Rua na Praça do Rosário, onde em 2000 o projeto começou.

Mercedez conhecia praticamente todos os integrantes do Boca de Rua que haviam pertencido à Turma dos Cachorrinhos – e eram chamados assim porque o cachorro-quente da carrocinha perto do colégio era famoso. Eles trabalhavam ali como guardadores de carros. Muitos haviam sido alfabetizados pela professora Deirdre Bicca, e ganharam notoriedade passageira quando foram entrevistados para o jornal Zero Hora.

Numa das tardes de trabalho, que acontecia sempre aos sábados, quando Mercedez já estava mais próximo do grupo, Bocão, ele e Neri ensaiavam uma percussão e um rap. Todos cantavam. Eu aproveitei que estava com o gravador, usado para treinar com eles as entrevistas feitas para o jornal, e comecei a gravar a cantoria.

Não lembro bem como começou, só lembro que, num determinado momento, Mercedez começou a cantar um rap que ele teria feito. Rosina, antenada, passou a anotar a letra. Ele ia criando a música, e ditou a letra do rap, palavra por palavra.

Esse momento tornou-se parte da história do Boca de Rua – quando Mercedez morreu, o jornal fez uma edição especial inteira sobre o amigo que partiu. E a letra do Rap do Mercedez estava lá, na íntegra. Neri, nosso rapper natural (também já falecido), acabou incorporando a música ao repertório do grupo de rap que foi criado tempos depois, sob a coordenação de Mário Pezão, numa oficina dentro do Projeto de Descentralização da Cultura da Prefeitura. E quando o grupo se apresentou pela primeira vez, Belo, Neri e Marcos cantaram o Rap do Mercedez. Pezão encarregou-se de lapidar, colocar ritmo. Tiano, atual coordenador do grupo Realidade de Rua – formado por alguns integrantes do Boca de Rua e outros que se aproximaram depois, no projeto do Gapa/RS - deu seu toque e aprimorou as apresentações do Rap do Mercedez.

Mercedez sempre volta para mim em cenas da memória muito nítidas. Na foto mais bonita que tirei dele, está de pé, ancorado no monumento da Praça do Rosário, com um blusão de lã e um olhar confiante.

Em outro momento, já mais frágil, recordo de um relato de Rosina sobre uma conversa que Mercedez puxou com ela nos primeiros tempos de aproximação com o grupo: “Quer ser minha mãe?”, perguntou. Ao que Rosina respondeu: “Mãe não posso ser, mas posso ser tua amiga”.

Ficamos mesmo amigas de Mercedez. A ponto de, após a visita ao Hospital São Pedro, ele ter insistido em nos levar para apresentar-nos à família e termos conhecido seus filhos algum tempo depois.

Aquele homenzarrão que provocava medo e pena das pessoas numa primeira impressão, tinha na verdade um coração enorme. Adorava os filhos, falava sempre deles, e seu sonho era reatar o contato com a família. Ajudava os amigos de rua como podia.

Para mim Mercedez revelou-se encantador. E não só pela música “Aquarela”, aprendida quando era criança no coral do abrigo Dom Bosco, mas pelo apreço que tinha por outro marco da infância: ele sempre quis ter uma flauta doce. Comprei a flauta para ele, mesmo sabendo do risco de perdê-la na rua. Na época, com o intuito de incentivar os integrantes a voltarem para os estudos e a guardar um pouco de suas histórias, demos para eles pastas de elásticos onde poderiam guardar seus documentos e material do colégio.

Foi na pasta azul que Mercedez colocou sua flauta, sua carteira de identidade e certidão de nascimento. E escreveu, na parte de dentro da capa: jornalista e jornaleiro. A pasta ficou guardada num armário dentro do Acolhimento Noturno – como muitos de seus amigos, era comum Mercedez perder a carteira de identidade ao dormir na rua. Guardar sua identidade, portanto, junto às coisas do Boca, era algo mais do que simbólico para ele e para nós.

Um dia, em uma das visitas para encontrá-lo no Acolhimento Noturno, tive um susto. No mural do abrigo, além do jornal Boca de Rua, estava lá uma foto minha e de Rosina com Mercedez – sempre que eu tirava fotos dos integrantes do Boca, costumava dar-lhes de lembrança, numa espécie de retorno da alma a seus donos. Nós havíamos sido incorporadas definitivamente a sua vida.

A última vez que o vi estava muito debilitado no Abrigo Marlene. Havia recém saído do hospital – sempre teve medo de ficar internado e havia fugido outras vezes, o que acabou agravando as complicações do HIV. Fraco, ainda muito doente, mal conseguia falar direito. Viajei no dia seguinte, a trabalho, e foi num canto do sertão do Brasil que fiquei sabendo pelo telefone da morte de Mercedez.

Para fazer a edição especial sobre ele levamos uma parte do grupo ao cemitério da Santa Casa. O grupo rezou, questionou um funcionário do cemitério por que não podiam colocar nem uma foto do Mercedez sobre sua cruz e escreveu uma das edições mais bonitas e tristes do jornal Boca de Rua. Mercedez estava morto, mas havia sobrevivido à indiferença das ruas. Sua história, pelo menos, foi registrada no jornal. E sua música, o rap, continua sendo cantada em todas as apresentações dos integrantes do Boca de Rua.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O dia em que Dayrell subiu na árvore

Em 25 de fevereiro de 1975, o estudante Carlos Alberto Dayrell subiu numa árvore na avenida João Pessoa, em frente à Faculdade de Direito da UFRGS, para evitar que fosse derrubada. Neste vídeo, o ambientalista Augusto Carneiro conta como começou o episódio. O vídeo faz parte de uma série de entrevistas feitas com Carneiro este ano.


quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O ambientalista Augusto Carneiro e suas histórias


A pasta de couro surrada o acompanha há anos, desde que era membro do Partido Comunista (do qual foi expulso depois de denunciar as atrocidades cometidas por Stalin). Nela, Augusto César Cunha Carneiro carrega a vida em papéis: são artigos seus e do amigo José Lutzenberger, companheiro e mestre na luta em defesa do meio ambiente. De vez em quando, leva também um dos livros e várias das fotos de parques, praças e árvores que ajudou a plantar e a implantar e que hoje compõem parte de sua rica biblioteca. Na forma de xerox, suas idéias são espalhadas em panfletos distribuídos em eventos e na Feira Ecológica da Rua José Bonifácio, em Porto Alegre, em uma barraca de livros à venda, aos sábados pela manhã.
Carneiro é um daqueles velhinhos de cabelos brancos e coração a 100 por hora. Tem 84 anos e uma energia invejável. Já foi contador, advogado, funcionário público e naturista. Seu currículo inclui a fundação da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e da Pangea Associação Ambientalista. Ele é membro do Conselho da Fundação Gaia, e já atuou no conselho do DMAE.
Tive o privilégio de ouvi-lo contar sua vida e pude registrar suas histórias em DVD. O trabalho, feito por uma cinegrafista amadora como eu, talvez deixe a desejar em técnica, mas é recheado de tanta vida, que a imagem por vezes sem foco perde importância diante do conteúdo. As conversas que tive com Carneiro renderam cinco DVDs que foram doados à Fundação Gaia. Cada pedaço da memória ali registrado ajuda a recompor as aventuras e as lutas dos ambientalistas dos anos 70 para cá. Estão ali as histórias da criação da Agapan, do Parque do Lami, do estudante Dayrell que subiu numa árvore para evitar que fosse derrubada (o vídeo Carneiro e Dayrell, disponível no YouTube, dá uma amostra).
Fiel escudeiro de Lutzenberger, mas nem sempre tão lembrado como ele, Carneiro foi homenageado durante o 2º Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental realizado de 10 a 12 de outubro de 2007 no Salão de Atos da Ufrgs, em Porto Alegre. Recebeu uma placa de reconhecimento dos ecojornalistas na abertura do encontro e o vídeo com um resumo de suas histórias no encerramento.
Mas Carneiro ainda tem muito pela frente, não pode parar. Em sua casa ainda mantém um enorme arquivo sobre meio ambiente, que aos poucos vai repassando para entidades como a Fundação Gaia e o Núcleo Amigos da Terra. São pastas e mais pastas com recortes de jornais antigos, artigos de José Lutzenberger, Henrique Roessler, além de livros que recontam a história de parques, praças e da cidade de Porto Alegre. Material precioso de pesquisa, sua angústia no momento é como organizar e armazenar tudo isso em um só lugar, com o devido respeito, para que a história não se perca.