terça-feira, 5 de julho de 2011

Mais uma história de águias e galinhas

A VILA ANTES


E DEPOIS


A versão original deste artigo foi publicada pela agência de notícias Inter Press Service (IPS) em 2 de julho de 2011 (http://www.ips.org/ipsbrasil.net/print.php?idnews=7255)


Texto de Clarinha Glock

José Luiz Ferreira, 60 anos, conta que nasceu pobre e continua pobre, mas teve uma grande chance na vida: conseguiu estudar. E embora tenha feito curso para ser padre e hoje sobreviva dando aulas de inglês, Seu Luiz - como é chamado na Vila Nova Chocolatão onde mora, em Porto Alegre -, pensa e fala diferente em meio à pobreza. Porque Seu Luiz vê águias onde todo mundo só enxerga galinhas. A história ele pediu emprestado ao “amigo”, o teólogo e escritor brasileiro Leonardo Boff, que ficou conhecido pela Teologia da Libertação, autor do livro A águia e a galinha.

Seu Luiz explica, com seu jeito pausado e adaptando um pouco a história, para se fazer entender: “Um cientista um dia foi fazer uma viagem, olhou um galinheiro e viu um monte de filhotinhos de águia agindo como galinhas, ciscando o milho. Disse para o dono: aquelas não são galinhas, são águias. E o dono respondeu: não, são galinhas, quer ver? Abriu o galinheiro, e os bichos continuaram ciscando. O cientista então roubou uma galinha e, depois de alguns meses, levou-a bem alto, soltou, e ela voou, voltando a ser águia. Todo mundo aqui (na vila) é águia há muitos anos sendo tratado como galinha. Se ninguém disser pra eles, vão continuar agindo como galinhas”.

A história da remoção da Vila Chocolatão onde Seu Luiz mora virou um marco na cidade porque pela primeira vez um reassentamento foi acompanhado de perto por universitários e geógrafos que fizeram um laudo para prevenir e solucionar problemas, com base no direito à moradia. O esforço resultou no adiamento da transferência até que um Termo de Compromisso fosse firmado em acordo com o Ministério Público Federal (MPF). “Não é porque passam a viver em moradia digna que vão abrir mão de trabalho, saúde e educação. Um dos princípios importantes é a proibição de retrocesso, porque onde estavam antes eles tiravam seu sustento”, assegurou o procurador Alexandre Gavronski, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do MPF.

A nova Vila Chocolatão fica afastada do Centro, tem menos lixo nas ruas, casas de material sólido, esgoto, luz elétrica, água enganada. Garante trabalho para 60 pessoas por turno em uma Unidade de Triagem de Resíduos doada por uma empresa privada, criada para suprir a demanda da população que sobrevivia antes catando lixo reciclável. Seria perfeita, não fosse o fato de desrespeitar o direito tal qual é previsto em lei, que prevê não só um teto, mas a possibilidade de reconstruir a vida com trabalho, saúde, educação e um mínimo de conforto para todos.

SEU LUIZ
antes e depois da mudança











A vila original estava há 25 anos em terreno do Tribunal Regional Federal. Antes da remoção, realizada em maio de 2011, moravam 732 pessoas em uma área insalubre, que havia incendiado mais de uma vez. Destas, 74% tinham renda média mensal de até um salário mínimo (R$ 545, cerca de US$ 342). No local será construído um novo prédio do Ministério Público Federal. A coordenação da transferência ficou com o Departamento Municipal de Habitação. “A nova vila é incomensuravelmente melhor”, afirmou Humberto Goulart, diretor do Demhab, uma semana antes da remoção. “A creche” - que não estava concluída – “é moderna, há vagas para todas as crianças nas escolas, os postos de saúde do entorno têm condições de dar conta da nova demanda, e o galpão de triagem é o mais moderno do Brasil”, enfatizou. “Algumas pessoas pediram coisas só para tensionar”, disse.

As críticas encabeçadas pela Associação dos Geógrafos Brasileiros e o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul chamaram a atenção para a pouca participação dos moradores da vila na construção do projeto de realocação, o que vai contra o Estatuto da Cidade. Também alertaram para a falta de moradias para atender todas as famílias – o que obrigou a Prefeitura a garantir o aluguel social em outra área para uma parte dos moradores -; do galpão de reciclagem sem capacidade de acolher todos os que antes trabalhavam como catadores e recicladores de lixo; bem como da padronização das casas, que, de fato, são confortáveis para famílias pequenas, mas não para proles maiores.


Uma semana depois da transferência alguns moradores questionavam se as promessas seriam cumpridas. “Não era bem o que eu esperava”, falou Teresinha Margarete do Rosário, na Usina de Triagem. Só havia conseguido vaga para um dos seis filhos na escola próxima. Vanessa Moraes Sampaio foi fazer a consulta de seu bebê no posto de saúde, mas teve de agendar para a semana seguinte, porque sua ficha ainda não havia sido transferida. Em compensação, Antônio Lázaro da Silva de Oliveira, que trabalha na construção civil, estava satisfeito: “Aqui é outra vida. Minhas três gurias estão estudando. Só que às 21h ninguém mais sai de casa. Vou conversar com o pessoal para botar segurança na vila”, anunciou.


Teresinha aguarda o cumprimento das promessas


Marta Susana Pinheiro Siqueira, que levou mais de um ano para construir com o marido uma casa do jeito que queria na antiga vila, um mês depois da mudança para a nova área aguarda que o Demhab solucione sua falta de espaço para alojar toda a família, transferindo-a novamente para outro lugar. Com quatro filhos, de idades entre 11 e 17 anos, ficou difícil acomodar todos em dois cômodos. Os rapazes mais velhos dormem numa barraca no quintal.


Marta espera a transferência para outra casa


Ainda que a remoção da Cholocatão não esteja ligada diretamente aos preparativos da Copa do Mundo de 2014, atualmente no Brasil tudo o que diz respeito a reassentamentos e reestruturação da cidade acaba confluindo com este objetivo. “Na verdade, tudo fica com cara de Copa porque é uma maneira de obter recursos”, explica a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, Relatora Especial do Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas. Raquel recebeu cartas de diversos pontos do país reclamando que os reassentamentos estavam ferindo os direitos mínimos dos cidadãos. Uma destas queixas era sobre a Vila Chocolatão.

Em dezembro de 2010, a relatora enviou um comunicado ao governo brasileiro, alertando sobre denúncias de remoções forçadas em função das obras de preparação para a Copa. Diante da falta de resposta, fez um comunicado à imprensa. Em maio, a ministra da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Maria do Rosário, por telefone, respondeu que o governo havia criado um grupo de trabalho envolvendo os Ministérios dos Esportes, das Cidades, a sua secretaria e a Secretaria Geral da Presidência da República para examinar a situação e tomar providências. Depois disso, a relatoria não teve mais nenhum contato, a não ser do prefeito de Porto Alegre, José Fortunatti, que declarou estranhar as denúncias, porque na Vila Nova Chocolatão todos os direitos haviam sido respeitados.

“O relator é para o mundo todo, não tem condições de ir a campo”, reiterou Raquel. Suas fontes são Ministérios Públicos, Defensorias Públicas, ONGs reconhecidas da área de Direitos Humanos. “Estou aguardando que o grupo de trabalho do governo responda à comunicação”, diz. “Se reincidir nas violações, poderá haver sanção”, observa. Em qualquer processo de remoção de pessoas é preciso garantir que após a mudança a vida seja melhor do que antes, assegura Raquel. “Mas os reassentamentos, em geral, são feitos longe do lugar original, com infraestrutura precária e sem fonte de trabalho para todos – testemunhei casos assim em São Paulo e no Rio de Janeiro”, afirma.

A geógrafa e pesquisadora Lucimar Siqueira, assessora técnica da ONG Cidade, que há 20 anos apóia movimentos sociais em luta por questões urbanas, lembra que há três grandes projetos em curso no país que impactam diretamente as áreas carentes e de ocupação informal: o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, que prevê políticas sociais, além de obras de infraestrutura; o Minha Casa, Minha Vida, também federal, com reurbanização e recuperação da Função Social da Propriedade; e a Copa do Mundo de 2014, cujas obras podem desalojar a população. Como aconteceu com a Vila Chocolatão, as obras da Copa são criticadas porque geralmente oferecem teto e assistencialismo para os removidos, mas não garantem que as águias possam voar.


Obs: a assessoria de comunicação da Secretaria Especial de Direitos Humanos informou que o grupo de trabalho está avaliando caso a caso e que serão feitas visitas para verificar que providências estão sendo tomadas em cada lugar onde foram feitas denúncias de violação de direitos humanos em reassentamentos.

sábado, 14 de agosto de 2010

Adolfo Pérez Esquivel e a luta pela paz


A entrevista a seguir foi feita originariamente para a agência Inter Press Service (IPS). Por uma questão de espaço, a matéria foi editada e está disponível em versão reduzida em português, inglês e espanhol no site https://www.ipsnews.net/2010/08/qa-the-world-needs-a-new-social-contract/ com o título: "O mundo precisa de um novo contrato social". A seguir, publico a entrevista na íntegra feita com o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel:

Por Clarinha Glock


Em 1980, o argentino Adolfo Pérez Esquivel ganhou o Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho em defesa dos direitos humanos. Aos 78 anos de idade (fará 79 em novembro), continua muito ativo: faz palestras sobre educação para a paz e por pouco não estava na flotilha que ia para Gaza. Nesta entrevista, realizada em julho de 2010, durante um encontro da Universidade Internacional da Paz, em Sant Cugat, Espanha, da qual Esquivel é fundador e presidente honorário, ele analisa a situação atual da América Latina, fala sobre um possível golpe de Estado no Paraguai e como andam as negociações para a criação de uma Corte Penal Internacional para tratar de crimes contra o Ambiente. “Temos de começar a pensar em um novo contrato social em escala planetária, mas também dentro de cada país”, observa.

Desde as ditaduras, o que aconteceu com a América Latina?
ADOLFO PÉREZ ESQUIVEL - Nem todos os países tiveram a mesma evolução. Depois das ditaduras impostas pela política dos Estados Unidos se produzem alguns fatos muito importantes que fazem com que a América Latina volte às democracias - condicionadas ou restringidas. É um processo muito rápido, que tem a ver com a Guerra das Ilhas Malvinas (1982). A confrontação antes era Este-Oeste: Estados Unidos e União Soviética. Com a Guerra das Malvinas, o problema é Norte-Sul.
Rapidamente os Estados Unidos se dão conta que é preciso buscar democracias, pela má imagem dos fatos que haviam sucedido. E começa um processo de democracias condicionadas e restringidas. Mas o modelo econômico, a estrutura, não modificou: a política neoliberal, as privatizações, a apropriação dos recursos naturais e não-naturais continua. Ainda que os Estados Unidos tenham deparado com as guerras do Iraque e do Afeganistão, nunca deixaram de olhar para América Latina. Então, o que acontece? O controle de bases militares e a condução de muitos governos. Quando algum se desvia dessa política hegemônica, começa a ter conflitos, como Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina. No Brasil, embora Lula faça obras sociais, ele não se afasta tanto do modelo neoliberal. Quando Manuel Zelaya, de Honduras, começa a ter outra visão das coisas e da situação do país, lhe dão um golpe de Estado, não através das Forças Armadas, ainda que tenham utilizado as Forças Armadas, mas legalizada através do Parlamento e do Poder Judiciário. É como uma experiência piloto para poder aplicar em outros países. Como, por exemplo, podem aplicar no Paraguai, porque estão passando por algo muito semelhante.

É possível prevenir esse novo golpe?
ESQUIVEL -
Estamos tratando de prevenir. Por isso, em agosto vamos estar no Fórum das Américas para defender a institucionalidade, a democracia e não o golpe de Estado.

De que forma os Estados Unidos estão se reposicionando em relação à América Latina?
ESQUIVEL - Estão gerando uma “pinça” militar em todo o continente, e cercando: têm o Plano Puebla-Panamá, para América Central e Caribe; o Plano Colômbia, com sete bases militares sob o pretexto do narcotráfico e do terrorismo; e a Tríplice Fronteira, no Paraguai, Argentina e Brasil. E, no Atlântico Sul, nas Ilhas Malvinas, uma base militar com Grã-Bretanha.
Além disso, há uma penetração muito forte de empresas transnacionais buscando os recursos que já estão faltando nos países centrais - a Amazônia, no Brasil, aparece em textos de estudos das escolas como área protegida pelos Estados Unidos. Apesar de tudo, há emergentes sociais, culturais e políticos muito fortes. O caso de Bolívia, por exemplo. O governo está recuperando as empresas nacionais e os recursos naturais que estavam privatizados. Estes são passos importantes, de passar a ser um Estado plurinacional, com reconhecimento dos povos indígenas, e também superar o analfabetismo, os problemas de saúde, a educação. E o mesmo está passando na Venezuela.

Alguns críticos dizem que a forma como esses países de esquerda e centro-esquerda tratam a questão de segurança fere os direitos humanos. O que o senhor pensa disso?
ESQUIVEL - Não há democracias perfeitas, mas há democracias perfectíveis, que se podem melhorar. Por exemplo, a Venezuela tem uma democracia distinta da aparente “democracia” (que não é democracia) da Colômbia. O caso de Colômbia é terrível: há uma repressão, um controle de grupos paramilitares, uma intervenção das Forças Armadas. O país tem quatro milhões de deslocados (desplazados) internamente e cinco milhões de exilados. Os colombianos votam, mas voto não garante a democracia, o que garante é a participação do povo. Na Venezuela há prisões? Sim. Veja o caso de Cuba - há uma agressão tão forte dos grandes interesses econômicos, que se não lhes põem limites, a Revolução Cubana já havia sido destruída como aconteceu com a Revolução Sandinista.
Para mim, a democracia passa pelo direito de igualdade para todos. Muitos atacam Cuba dizendo que não é um sistema democrático, mas ninguém fala dos Estados Unidos, que não é um sistema democrático. E por que Estados Unidos leva 50 anos de bloqueio a Cuba, apesar de todas as resoluções das Nações Unidas. Por que tem o direito de veto? O que acontece com Israel e Palestina? De que democracia estamos falando, quando estão oprimindo o povo palestino da forma como estão fazendo? O que acontece com a questão de Ruanda e do Congo? Com todas as dificuldades e erros, os países na América Latina avançaram e deram passos qualitativos na construção de democracias participativas, e não estas democracias delegativas, em que depois os governos fazem o que querem. É outra forma de entender a democracia. São espaços a construir.
Há um fato que se conhece pouco. Eu estava na Bolívia e, depois de me encontrar com Evo Morales, fui a Santa Cruz. As pessoas ali estavam armadas para uma guerra civil, provocando Evo para que mandasse o Exército (isso foi depois do massacre de Pando). O que faz Evo? Manda dois mil policiais sem armas. Ele praticamente desarticulou aqueles que queriam uma guerra civil. Houve eleições e Evo ganhou por 68%. Mas os grandes meios de comunicação falam da ditadura de Evo Morales. Acredito que a agressão permanente de Colômbia a Venezuela é para gerar um conflito armado, e isso é instigado pelos Estados Unidos.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, tem condições de mudar alguma coisa?
ESQUIVEL
- Não, Obama chegou ao governo, mas não ao poder. Do ponto de vista pessoal é uma boa pessoa, tenho um amigo que está perto dele e dizem que tem boas intenções, não o conheço pessoalmente. Mas no governo é um escravo, a política do governo dos Estados Unidos não é ele quem conduz. Ele se comprometeu a terminar com a guerra do Iraque e a intensificou, mandou mais soldados; na de Afeganistão também; de buscar uma solução para a Colômbia e não pôde fazer. Veja que o projeto desta lei de saúde lhe custou muitíssimo, e está se opondo à lei de imigrantes que fizeram no Texas. É um homem que não tem condições de governabilidade como conseguiu Evo Morales (Bolívia), Hugo Chávez (Venezuela) ou Rafael Correa (Equador). O importante na América Latina é que estes governos estão tratando de se unir, não só através do Mercosul, da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), do Banco do Sul. Estão buscando meios alternativos de comunicação, como a Telesur. Quer dizer, estão tratando de fortalecer uma força regional e é a única forma de enfrentar estes grandes poderes internacionais que hoje dominam as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial.

Isso pode impedir um golpe no Paraguai?
ESQUIVEL -
Claro. A presidente da Argentina fez algo muito interessante. Em 25 de maio, na festa da pátria e do bicentenário, convidou vários governantes, entre eles Manuel Zelaya, o presidente deposto de Honduras, e o recebeu com honras de presidente em exercício. Isto incomoda muito os Estados Unidos, que vai perdendo sua hegemonia. Hoje quando alguém vê em escala mundial o que está passando, vê fenômenos: não há sociedades estáticas, há uma dinâmica permanente de transformação e isto está se dando, por exemplo, no sudeste asiático. A China é uma potência, é o grande credor dos Estados Unidos.
A América Latina tem que buscar formas de fortalecer sua unidade porque é um dos continentes que guarda os grandes recursos naturais, e a próxima guerra vai ser por água, por recursos energéticos, por alimentos. A única forma de se fortalecer são as alianças, não só econômicas, mas também culturais, políticas, de integração.


Apesar dos avanços, o senhor é um crítico muito duro do governo da Argentina. Por quê?
ESQUIVEL -
O governo argentino fez coisas interessantes. Por outro lado, é um discurso progressista, mas não modifica a situação estrutural que não se resolve com subsídios ou com esmolas aos pobres, isso é dependência. Outra coisa: o caso das grandes mineradoras - a presidente veta a Lei de Proteção dos Glaciares para favorecer a empresas transnacionais como a Barrick Gold no projeto Pascua-Lama, da Argentina e do Chile. Vai contaminar os glaciares, destruí-los - 70% de água que consome o país provém dos glaciares. Para tirar o ouro e a prata, estas empresas mineiras usam cianureto, mercúrio e sulfeto. Essa contaminação vai chegar ao ser humano, aos animais, à vegetação, vai mudar a biodiversidade. Está destruindo os pequenos e médios produtores rurais. As pessoas estão abandonando os campos. E aí se criam as periferias das favelas e a miséria. Não posso estar de acordo. Sim, apoiei a Lei dos Meios de Comunicação, ela fez muito bem a reforma da Corte Suprema de Justiça, a economia argentina melhorou de certa maneira, mas este modelo em qualquer momento pode ser explosivo.

E Lula (Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil)?
ESQUIVEL
- Lula, como governante, se fixou na posição de avançar com o Brasil potência. As desigualdades continuam. Embora tenha feito obras sociais, não foram suficientes, porque talvez o que esteja faltando mais são projetos de desenvolvimento integral para superar a pobreza. O Brasil é um país grande com uma grande diversidade e marginalização. Mas acredito que Lula, nesse aspecto, avançou. Não pôde fazer talvez tudo o que queria fazer. É um reformista. Não era antes, eu o conheço desde o movimento sindical do ABC.

Então, o que aconteceu?
ESQUIVEL -
Acho que alguns não, mas... o poder domestica e a muitos corrompe. Não acredito que Lula seja um corrupto, mas é possível que, em grande medida, tenha sido “domesticado” pelo poder. Não porque seja condicionado ao sistema - e se moveu dentro disso com muita habilidade. Pode ser uma estratégia, pode ser que pôde avançar até aí, porque a outra opção seria ter chegado a conflitos e enfrentamentos muitos duros que não sei se estava preparado para suportar como fez Evo Morales - e Evo passou muito mal, com muitas tentativas de golpes de Estado. Contra Hugo Chávez houve um golpe de Estado, e há um acosso permanente contra ele.

A que o senhor se refere quando fala em “emergentes sociais”?
ESQUIVEL
- Vou falar de três. Um é o movimento de mulheres, que nunca estava visibilizado. A mulher hoje é protagonista em todo o continente latino-americano, dos povos indígenas às esferas científicas, tecnológicas e do pensamento. A educação praticamente passou para a mão delas. Eu sempre digo: “Mulheres, por favor, não imitem os homens!”. As mulheres têm outro pensamento, outra sensibilidade.
O outro movimento importante é o dos indígenas, que começaram a recuperar sua identidade, sua cultura, sua espiritualidade, e a organizar-se. E o terceiro são os movimentos sociais que estão gerando uma nova forma de fazer política e tratando de construir uma democracia participativa. Tudo isso está levando a algo que venho insistindo: temos de começar a pensar em um novo contrato social em escala planetária, mas também dentro de cada país.
Veja que a Bolívia é um país multicultural linguístico, onde se reconhecem as diversas nacionalidades. É um avanço enorme que não tem em muitos países. É um desafio. Quando a Real Academia Espanhola realizou um encontro “da Língua”, nós fizemos outro paralelo, o Congresso “das Línguas”, porque não somos um país monolínguístico e temos que começar a respeitar essa grande diversidade. Quando falo de gerar um novo contrato social também me refiro a isso, porque tenhamos em conta que a dominação não começa pelo econômico, mas pelo cultural.

É possível firmar este novo contrato social quando alguns países, não só da América Latina, não conseguem garantir a memória histórica?
ESQUIVEL -
Não se consegue porque os povos não se mobilizam. Têm de deixar de ser expectadores e passar a ser protagonistas. Na Argentina, graças à resistência e à mobilização, hoje temos os genocidas sentados no banco dos tribunais.

E por que a mobilização na Argentina é tão forte e não se consegue mobilizar em outros países? É uma questão cultural, também?
ESQUIVEL
- O Brasil tem algo muito interessante, que é o Movimento dos Sem Terra. Nós, na Argentina temos o Movimento dos Campesinos. Mas nos custou 30 anos superar a Lei do Ponto Final, de anistias. Fomos descobrindo novas formas de resistência cultural e política. Outra coisa que conseguimos desenvolver muito forte foram as redes de solidariedade internacional. As pessoas têm que ir reclamando para que lhes abram os arquivos. Acho que são etapas, nem todos os povos caminham igual, uns vão mais rápido. Mas no final, é preciso ter essa memória histórica para modificar as situações, porque uma das coisas que temos muito claro é que sobre a impunidade é impossível fazer uma democracia. O caso da Espanha: quando o juiz Baltasar Garzón tentou tocar no Franquismo, o tiraram de seu cargo. A isto também se chama democracia. Cada um tem que ter suas próprias experiências e daí reverter a situação.

O que significou, na prática, o Prêmio Nobel da Paz para o senhor?
ESQUIVEL
- O Prêmio Nobel é um instrumento a serviço dos povos, nada mais. Se não está a serviço dos povos, não serve, é uma dor de cabeça. O que a mim facilitou foi abrir portas que em outros tempos não teria acesso. Com alguns Prêmios Nobel trabalhamos em algumas missões internacionais. Por exemplo, neste barco que foi à Gaza não pude viajar por um acidente, senão estaria nele, mas foi Maired Corrigan Maguire (Prêmio Nobel da Paz de 1976).
Há uma organização que formamos há cerca de 10 anos, em Denver, nos Estados Unidos, chamada Peacejam. Vamos às escolas para falar com os jovens e fazer jornadas com eles sobre educação para a paz e desenvolver valores de solidariedade.

O senhor está participando de uma campanha para a formação de uma Corte Penal Europeia e Internacional pelo Ambiente. Os crimes contra o meio ambiente podem ser comparados aos crimes de guerra?
ESQUIVEL
- Como parte das coisas que realizo sou presidente da Academia de Ciências de Veneza, integrada por 120 científicos de distintas partes do mundo. Trabalhamos sobre os grandes problemas ambientais.
Há empresas, por exemplo, como a British Petroleum - está provocando um dano ecológico ambiental enorme que vai ficar em impunidade. Os danos para a população, a devastação dos bosques, dos monocultivos, a destruição da biodiversidade são irreversíveis. Nos direitos humanos se vê o individual, mas não se vê o conceito dos danos provocados aos povos.
Em 1976, em Argel, a Liga Internacional pelos Direitos e a Liberação dos Povos proclama a Declaração Universal dos Direitos dos Povos. Se a ONU não faz, fazem os povos. E acredito que esse é um dos grandes eixos sobre os quais temos que trabalhar. Por exemplo: o dano aos povos indígenas, o dono a populações inteiras por contaminação da água e do ambiente, a destruição das populações - a FAO, em 2001, quando houve o atentado às Torres Gêmeas, divulgou um relatório aterrador, mas as Torres Gêmeas taparam tudo. Dizia que, por dia, morrem no mundo mais de 35 mil crianças de fome. Isso eu chamo de Terrorismo Econômico. O que acontece com países que tinham uma vegetação enorme e podiam produzir, e hoje não podem produzir nada porque a desertificação e o roubo permanente os deixou sem recursos, e as pessoas têm que emigrar? Não são apenas os deslocados (desplazados) internos que sofrem perseguição política ou necessidades econômicas, esse é um problema de sobrevivência. Então estamos propondo a constituição do Tribunal Penal Internacional sobre o Ambiente, quer dizer, uma reforma do Estatuto de Roma (tratado que estabeleceu a Corte Penal Internacional, em 1998).

E como está o processo para chegar a este Tribunal?
ESQUIVEL -
Está se tratando de avançar, para ver se o Parlamento Europeu pode chegar a constituir uma Corte Europeia sobre o Ambiente. Ao mesmo tempo, é preciso lançar uma campanha internacional para que os povos pressionem. O governo nunca vai mudar de cima para baixo. A resistência tem que vir das bases para que os governos se motivem e provoquem as mudanças.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Redutores de Preconceitos



Em 2000, acompanhei os Redutores de Danos de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Entre os redutores, havia usuários e ex-usuários de drogas injetáveis. Parte destas pessoas retratadas no vídeo já morreram. O trabalho consistia inicialmente na troca de seringas usadas por novas, para evitar o compartilhamento e a propagação de doenças como hepatite e Aids. Mas era mais do que isso - ajudava as pessoas a se organizarem, enfrentarem medos, preconceitos, dores, e as estimulava ao auto-cuidado e a buscarem tratamento.

A quem interessar: a Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda) pode dar mais informações sobre os Programas de Redução de Danos hoje no Brasil. Veja no site http://abordabrasil.blogspot.com/

Augusto Carneiro - o vídeo



Este vídeo foi realizado em 2007, como uma homenagem ao ambientalista Augusto Carneiro. Não é um vídeo profissional, mas ajuda a resgatar um pouco da história de Carneiro e das origens do movimento ambientalista de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Cidadania




"PÔ, para ser cidadão não é mole..."

(Tonico, agente da Redução de Danos)


Filmado em 2000, o documentário Redutores de Preconceitos mostra a realidade dos agentes do Programa de Redução de Danos para Usuários de Drogas Injetáveis. O programa implantado pela Prefeitura de Porto Alegre, infelizmente, perdeu muitos de seus agentes - por questões políticas, por falta de apoio, pela própria Aids.

O princípio da redução de danos para usuários de drogas era de que, enquanto a pessoa não conseguia se livrar da droga, pelo menos poderia evitar a Aids, a hepatite e outras doenças, evitando compartilhar seringas contaminadas pelo vírus HIV.

A fala de Tonico sobre cidadania encerra o documentário. Tonico vive, mas a maior parte dos entrevistados no documentário não está mais aí para dar seu depoimento.

Nestes oito anos, a droga também mudou - é o crack que está detonando mais com crianças e adultos.

Fica o registro da fala de Tonico para pensar o que é esta tal de cidadania.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Chineza se foi...


"Claro que todas esquinas,
todas praças, o povo em geral, de rua
ainda continua na sua condição.
seja qualquer uma,
mas sempre
sonhando, talvez
com um futuro,
muitas vezes, dramático,
muitas vezes, feliz,
mas infelismente,
ainda há muito para
conquistar, e construir"

(Chineza)

Esta foi a última mensagem que recebi de Chineza. Foi escrita com sua própria letra, numa folha rasgada de caderno, e entregue a mim por Manoel, que durante um tempo trabalhou como “oficineiro da escrita” do Jornal Boca de Rua. Chineza era Marko Khan Su Gria, seu nome indígena.
Chineza escrevia com a alma, e se sua alma era de fato batalhadora e brilhante, continha uma tristeza profunda também.
Durante dias esta mensagem ficou no meu mural, me lembrando do carinho de Chineza e de outras pessoas com quem trabalhei no jornal Boca de Rua. Tirei do quadro de avisos ontem à noite. Hoje à tarde, 20 de agosto de 2008, recebi a notícia da morte de Chineza. Dizem que foi por tuberculose. Era HIV positivo. Pegou o frio da rua neste inverno chuvoso, percorreu o mesmo ciclo de outros tantos moradores de rua: foi para o hospital, saiu, voltou para o hospital, morreu ali. Antes de morrer, ainda disse que queria ir embora desta vida como suas amigas - na rua mesmo. Ela se referia, entre tantas, a Barbie, amiga que morreu alguns meses antes, e que também participou da equipe do jornal.


Chineza era diferente, porque sua alma gritava em palavras que ela mesma escrevia, sem ajuda de ninguém. Era meio índio, rejeitado pela tribo no passado por sua homossexualidade. Volta e meia podia-se encontrá-la machucada por ter apanhado sem motivo algum, ou porque estava simplesmente passando na rua, e parecia suspeita. Ou porque estava sentada num canto onde não era bem-vinda. Chineza sofreu todos os preconceitos que a ignorância humana pode permitir. Foi alvo de todos os estereótipos possíveis em uma só pessoa: pobre, homossexual, morador de rua, índio, drogado, aidético. E enfrentava isso tudo com tanta dignidade e sensibilidade, que envergonharia os algozes da moral alheia. Mas lhe doía muito esse enfrentamento diário.


Não era santa, é verdade. Era gente. Numa das últimas vezes que a vi estava no Gapa/RS apresentando um vídeo em que interpretou a mãe de um jovem atormentado pelo abandono e violência no lar. No making of, Chineza conta sua própria história. Este talento vivia sob pressão e depressão.
Outro dia, de relance, emparelhei por acaso o carro numa sinaleira com uma Chineza estaqueada na calçada, amortecida provavelmente pelo álcool, que a ajudava a amenizar tantas dores e lhe trazia outras. Ficou horas parada olhando o nada, uma cena que contrastava com a vida interna que dava às palavras nas reuniões do Boca de Rua, do Gapa, das oficinas da Casa de Convivência. Chineza vai fazer falta...talvez não tenha percebido o quanto era importante para tanta gente com sua presença nas reuniões, nos vídeos, nas discussões, na rua, na vida.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Histórias que se cruzam ao acaso




Viajar sozinho tem um lado muito bom, que é o de prestar mais atenção nos personagens da vida real que cruzam pelo nosso caminho. Um cumprimento aqui, uma curiosidade ali, um sorriso, e pronto: a gente abre espaço para conhecer outras pessoas e realidades, e tornar os passeios solitários uma rica experiência, cheia de histórias para contar. Foi assim, viajando sozinha entre Belo Horizonte, Ouro Preto e Mariana, em Minas Gerais, que conheci Seu Damião e Fábio. Era um dia de folga de um congresso em BH, em maio deste ano, e aproveitei para desvendar um pouco mais do Estado.
Damião Amaro Lopes tem cabelos brancos e sorriso largo. Para quem não o conhece, vai logo se apresentando: “Sou o homem das sete profissões e das 21 necessidades”. Aos 74 anos, completados agora, em 6 de junho de 2008, ele é um informal contador de histórias da Estação Cidadania de Ouro Preto. Quer pegar o Trem da Vale entre as históricas Outro Preto e Mariana? Pois ninguém cruza o lugar sem deparar com seu Damião. Quando não está contando histórias, está tocando seu acordeão para os visitantes, ou improvisando sons com um violão de cabaça.
As sete profissões não são bem sete, nem as 21 necessidades, cuja lista varia conforme a memória e vontade de ouvir do freguês. Mas quem se importa? Um banquinho improvisado no Vagão Sonoro Ambiental da estação de Ouro Preto serve de palco para seu Damião. Ao lado de Fábio Costa Carvalho, estudante de Música que trabalha como monitor neste vagão que nunca sai do lugar, ele desafia quem tenha melhor lábia.
Conta que nasceu em Juazeiro do Padre Cícero, no Ceará, mas está desde 1955 em Minas. Foi agricultor em Cariri; depois, ferreiro com carteira assinada; mecânico de montagem em uma fábrica de tecido; analista químico, com registro e tudo, e atua como profissional de fotografia há 22 anos. “Conheço fotografia da hora que nasce até quando termina”, tenta explicar. Registra de tudo: de casamentos a fotos da indústria de alumínio. E segue a lista: formado em restauração na Fundação de Artes de Ouro Preto, ajudou a recuperar imagens de telas das igrejas. E, finalmente, artista plástico - garante que tem trabalhos seus enfeitando casas no Exterior.
Fábio já se acostumou com a figura falante no Vagão Sonoro Ambiental onde, de canos e restos de material de trens, se tira sons e música. Ele próprio, que nasceu em Miraí, no interior, ainda mal conhece Ouro Preto. Veio tentar a sorte e o estudo e torce para que volte a obrigatoriedade das aulas de música nas escolas para que tenha mais campo de trabalho no futuro. Enquanto isso, fica ali para receber as crianças e os adultos curiosos que vistam a estação. Seu Damião se acerca quase toda a semana, para se inspirar e inspirar os outros.
O passeio do Trem da Vale custa R$ 18 (quase o preço do ônibus de BH para Ouro Preto) e vale a pena pela paisagem do caminho. Quem quiser saber mais sobre o passeio pode acessar o site http://www.tremdavale.com.br/. É uma opção gostosa para quem estiver de passagem por BH. Num mesmo dia, dá para visitar Ouro Preto, pegar o trem, passear por Mariana, e voltar para a capital mineira.