A VILA ANTES
E DEPOIS
A versão original deste artigo foi publicada pela agência de notícias Inter Press Service (IPS) em 2 de julho de 2011 (http://www.ips.org/ipsbrasil.net/print.php?idnews=7255)
Texto de Clarinha Glock
José Luiz Ferreira, 60 anos, conta que nasceu pobre e continua pobre, mas teve uma grande chance na vida: conseguiu estudar. E embora tenha feito curso para ser padre e hoje sobreviva dando aulas de inglês, Seu Luiz - como é chamado na Vila Nova Chocolatão onde mora, em Porto Alegre -, pensa e fala diferente em meio à pobreza. Porque Seu Luiz vê águias onde todo mundo só enxerga galinhas. A história ele pediu emprestado ao “amigo”, o teólogo e escritor brasileiro Leonardo Boff, que ficou conhecido pela Teologia da Libertação, autor do livro A águia e a galinha.
Seu Luiz explica, com seu jeito pausado e adaptando um pouco a história, para se fazer entender: “Um cientista um dia foi fazer uma viagem, olhou um galinheiro e viu um monte de filhotinhos de águia agindo como galinhas, ciscando o milho. Disse para o dono: aquelas não são galinhas, são águias. E o dono respondeu: não, são galinhas, quer ver? Abriu o galinheiro, e os bichos continuaram ciscando. O cientista então roubou uma galinha e, depois de alguns meses, levou-a bem alto, soltou, e ela voou, voltando a ser águia. Todo mundo aqui (na vila) é águia há muitos anos sendo tratado como galinha. Se ninguém disser pra eles, vão continuar agindo como galinhas”.
A história da remoção da Vila Chocolatão onde Seu Luiz mora virou um marco na cidade porque pela primeira vez um reassentamento foi acompanhado de perto por universitários e geógrafos que fizeram um laudo para prevenir e solucionar problemas, com base no direito à moradia. O esforço resultou no adiamento da transferência até que um Termo de Compromisso fosse firmado em acordo com o Ministério Público Federal (MPF). “Não é porque passam a viver em moradia digna que vão abrir mão de trabalho, saúde e educação. Um dos princípios importantes é a proibição de retrocesso, porque onde estavam antes eles tiravam seu sustento”, assegurou o procurador Alexandre Gavronski, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do MPF.
A nova Vila Chocolatão fica afastada do Centro, tem menos lixo nas ruas, casas de material sólido, esgoto, luz elétrica, água enganada. Garante trabalho para 60 pessoas por turno em uma Unidade de Triagem de Resíduos doada por uma empresa privada, criada para suprir a demanda da população que sobrevivia antes catando lixo reciclável. Seria perfeita, não fosse o fato de desrespeitar o direito tal qual é previsto em lei, que prevê não só um teto, mas a possibilidade de reconstruir a vida com trabalho, saúde, educação e um mínimo de conforto para todos.
SEU LUIZ
antes e depois da mudança
A vila original estava há 25 anos em terreno do Tribunal Regional Federal. Antes da remoção, realizada em maio de 2011, moravam 732 pessoas em uma área insalubre, que havia incendiado mais de uma vez. Destas, 74% tinham renda média mensal de até um salário mínimo (R$ 545, cerca de US$ 342). No local será construído um novo prédio do Ministério Público Federal. A coordenação da transferência ficou com o Departamento Municipal de Habitação. “A nova vila é incomensuravelmente melhor”, afirmou Humberto Goulart, diretor do Demhab, uma semana antes da remoção. “A creche” - que não estava concluída – “é moderna, há vagas para todas as crianças nas escolas, os postos de saúde do entorno têm condições de dar conta da nova demanda, e o galpão de triagem é o mais moderno do Brasil”, enfatizou. “Algumas pessoas pediram coisas só para tensionar”, disse.
As críticas encabeçadas pela Associação dos Geógrafos Brasileiros e o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul chamaram a atenção para a pouca participação dos moradores da vila na construção do projeto de realocação, o que vai contra o Estatuto da Cidade. Também alertaram para a falta de moradias para atender todas as famílias – o que obrigou a Prefeitura a garantir o aluguel social em outra área para uma parte dos moradores -; do galpão de reciclagem sem capacidade de acolher todos os que antes trabalhavam como catadores e recicladores de lixo; bem como da padronização das casas, que, de fato, são confortáveis para famílias pequenas, mas não para proles maiores.
Uma semana depois da transferência alguns moradores questionavam se as promessas seriam cumpridas. “Não era bem o que eu esperava”, falou Teresinha Margarete do Rosário, na Usina de Triagem. Só havia conseguido vaga para um dos seis filhos na escola próxima. Vanessa Moraes Sampaio foi fazer a consulta de seu bebê no posto de saúde, mas teve de agendar para a semana seguinte, porque sua ficha ainda não havia sido transferida. Em compensação, Antônio Lázaro da Silva de Oliveira, que trabalha na construção civil, estava satisfeito: “Aqui é outra vida. Minhas três gurias estão estudando. Só que às 21h ninguém mais sai de casa. Vou conversar com o pessoal para botar segurança na vila”, anunciou.
Teresinha aguarda o cumprimento das promessas
Marta Susana Pinheiro Siqueira, que levou mais de um ano para construir com o marido uma casa do jeito que queria na antiga vila, um mês depois da mudança para a nova área aguarda que o Demhab solucione sua falta de espaço para alojar toda a família, transferindo-a novamente para outro lugar. Com quatro filhos, de idades entre 11 e 17 anos, ficou difícil acomodar todos em dois cômodos. Os rapazes mais velhos dormem numa barraca no quintal.
Marta espera a transferência para outra casa
Ainda que a remoção da Cholocatão não esteja ligada diretamente aos preparativos da Copa do Mundo de 2014, atualmente no Brasil tudo o que diz respeito a reassentamentos e reestruturação da cidade acaba confluindo com este objetivo. “Na verdade, tudo fica com cara de Copa porque é uma maneira de obter recursos”, explica a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, Relatora Especial do Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas. Raquel recebeu cartas de diversos pontos do país reclamando que os reassentamentos estavam ferindo os direitos mínimos dos cidadãos. Uma destas queixas era sobre a Vila Chocolatão.
Em dezembro de 2010, a relatora enviou um comunicado ao governo brasileiro, alertando sobre denúncias de remoções forçadas em função das obras de preparação para a Copa. Diante da falta de resposta, fez um comunicado à imprensa. Em maio, a ministra da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Maria do Rosário, por telefone, respondeu que o governo havia criado um grupo de trabalho envolvendo os Ministérios dos Esportes, das Cidades, a sua secretaria e a Secretaria Geral da Presidência da República para examinar a situação e tomar providências. Depois disso, a relatoria não teve mais nenhum contato, a não ser do prefeito de Porto Alegre, José Fortunatti, que declarou estranhar as denúncias, porque na Vila Nova Chocolatão todos os direitos haviam sido respeitados.
“O relator é para o mundo todo, não tem condições de ir a campo”, reiterou Raquel. Suas fontes são Ministérios Públicos, Defensorias Públicas, ONGs reconhecidas da área de Direitos Humanos. “Estou aguardando que o grupo de trabalho do governo responda à comunicação”, diz. “Se reincidir nas violações, poderá haver sanção”, observa. Em qualquer processo de remoção de pessoas é preciso garantir que após a mudança a vida seja melhor do que antes, assegura Raquel. “Mas os reassentamentos, em geral, são feitos longe do lugar original, com infraestrutura precária e sem fonte de trabalho para todos – testemunhei casos assim em São Paulo e no Rio de Janeiro”, afirma.
A geógrafa e pesquisadora Lucimar Siqueira, assessora técnica da ONG Cidade, que há 20 anos apóia movimentos sociais em luta por questões urbanas, lembra que há três grandes projetos em curso no país que impactam diretamente as áreas carentes e de ocupação informal: o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, que prevê políticas sociais, além de obras de infraestrutura; o Minha Casa, Minha Vida, também federal, com reurbanização e recuperação da Função Social da Propriedade; e a Copa do Mundo de 2014, cujas obras podem desalojar a população. Como aconteceu com a Vila Chocolatão, as obras da Copa são criticadas porque geralmente oferecem teto e assistencialismo para os removidos, mas não garantem que as águias possam voar.
Obs: a assessoria de comunicação da Secretaria Especial de Direitos Humanos informou que o grupo de trabalho está avaliando caso a caso e que serão feitas visitas para verificar que providências estão sendo tomadas em cada lugar onde foram feitas denúncias de violação de direitos humanos em reassentamentos.